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'A favela sempre perde, na saúde não é diferente', diz Agente de Saúde de PE sobre trabalho em comunidades durante pandemia do coronavírus

Unidade de Saúde da Família Vila Boa Vista fica em Nova Descoberta, Zona Norte do Recife — Foto: Reprodução/Google Street View
Unidade de Saúde da Família Vila Boa Vista fica em Nova Descoberta, Zona Norte do Recife — Foto: Reprodução/Google Street View
Edivania Tavares é agente de saúde. Há 11 anos ela trabalha no posto Vila Boa Vista, próximo à sua casa em Nova Descoberta, comunidade da Zona Norte do Recife (PE). Seu trabalho é prestar atendimento aos moradores da região de porta em porta — e dentro das casas. Com a pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2), que causa da doença Covid-19, a rotina de trabalho mudou e novos desafios surgiram.
"A favela perde sempre, na saúde não é diferente. Nosso trabalho, agora, é de portão para fora. Meu medo maior não é nem pegar o coronavírus, mas de ser um agente de transmissão para outras pessoas. Tenho medo pelo meu filho, que é asmático, e pelos meus pacientes idosos".
Além de cumprir o distanciamento, um das principais medidas recomendadas por autoridades para conter o avanço da Covid-19, Edivania e outras colegas começaram a utilizar o aplicativo WhatsApp para amenizar o sofrimento de quem precisa de assistência.

Situação parecida é a que vive Rozangela Silva, que há quase 20 anos trabalha no posto do Córrego da Bica, também em Nova Descoberta. Para facilitar a comunicação com as pessoas que mais dependem de acompanhamento, ela criou um grupo no WhatsApp com mais de 80 pacientes. E é por lá que ela passa orientações, tira dúvidas e recebe as demandas das famílias.
Com mais de 34 mil habitantes, Nova Descoberta, periferia do Recife, foi oficializado como bairro em 1988, quando foi desmembrado de Casa Amarela, junto de outros locais (Poço da Panela, Morro da Conceição, Vasco da Gama, Tamarineira, Macaxeira, Mangabeira, Alto José do Pinho e Alto do Mandu). Das áreas de morro, só ficou no bairro o Alto Santa Isabel.
Onde fica Nova Descoberta, comunidade na Zona Norte de Recife (PE) — Foto: Rodrigo Sanches/G1
Onde fica Nova Descoberta, comunidade na Zona Norte de Recife (PE) — Foto: Rodrigo Sanches/G1

No posto em que Edivania trabalha são atendidos, em média, 8 mil pacientes, pertencentes a cerca de 3 mil famílias. Antes da pandemia, as agentes de saúde faziam, diariamente, ao menos 10 visitas aos pacientes. No novo cenário, o serviço ficou restrito — e a população, que já contava com estrutura precária e limitada de saúde, passou a sofrer ainda mais.
"Temos contato com muitas pessoas e, para evitar que a gente e contamine ou contamine os pacientes, nossas visitas foram diminuídas. Isso nos preocupa muito, porque há casos de pessoas com assistência prioritária, como quem têm doenças crônicas, hipertensão, diabetes. Já são pessoas do grupo de risco e, se têm as patologias descontroladas, acabam tendo que ir a uma emergência, se expondo e, por vezes, morrendo", diz Edivania.
Ainda segundo Edivania, a sensação é de que, por causa da pandemia, outras doenças, comuns nas comunidades, mas que estavam controladas graças à ação das equipes de saúde da família, voltaram a assolar a população. Não porque haja um pico de transmissão dessas doenças, mas porque, sem a devida assistência, os pacientes passam a se agravar cada vez mais.

"Com a pandemia, não estamos conseguindo acompanhar os pacientes como antes, e já tínhamos doenças negligenciadas, como tuberculose e hanseníase. Muitos pacientes já estavam aguardando consultas, como de cardiologista, e agora, até as que estavam marcadas foram canceladas. Temos nos preocupado porque um hipertenso descontrolado, ou alguém com a glicemia muito alta, vai para a urgência. Temos casos de pessoas que foram, faleceram, e a família fica na dúvida se foi de Covid-19. Temos, ao menos, dois casos confirmados de mortes por coronavírus na nossa área de atuação", afirma a agente de saúde.

Sensação de impotência e acúmulo de funções

O trabalho das agentes, guerreiras das ruas das comunidades do Recife, agora fica restrito a "do portão das casas para fora", para evitar a disseminação do vírus. No posto em que Edvania trabalha há mais 12 agentes de saúde, que se dividem em duas equipes para dar conta do trabalho. Uma delas é Maria Alice Bulhões, que trabalha há 15 anos no local. Para ela, a sensação, muitas vezes, é de impotência e de acúmulo de funções.

"Estamos praticamente sem vacina, porque há, claro, uma priorização do coronavírus. Muitos trabalhadores estão afastados. No nosso posto, por exemplo, temos duas técnicas em enfermagem na vacina. Uma delas se afastou há dois anos e ficamos com uma. Agora, essa única que restou está com suspeita de Covid-19 e, por isso, de quarentena", afirma.
"Se não cuidarmos, no fim da pandemia, teremos não só coronavírus, mas poliomielite, coqueluche, etc. Precisamos cuidar, também, das demandas essenciais, para evitar o retorno dessas doenças que estavam controladas", completa Maria Alice.
Ainda segundo Maria Alice, na periferia, as agentes de saúde acabam atuando em funções que ultrapassam a profissão, por vezes servindo como assistentes sociais e psicólogas — esta última, profissão que ela mesma pretende desempenhar no futuro, quando terminar a faculdade, na qual está no segundo período.
Nova Descoberta fica na Zona Norte do Recife — Foto: Reprodução/TV Globo
Nova Descoberta fica na Zona Norte do Recife — Foto: Reprodução/TV Globo
"É uma situação muito difícil e eu vejo uma solidariedade muito grande, uma ajuda mútua, principalmente naqueles que menos têm. A gente precisa se reinventar para promover saúde e se prevenir. Perto de onde moro há uma ocupação, com cerca de 150 famílias. Vou lá para ver as demandas que eles têm e acabo levando lanche, sopa, café, bolacha. Eles recebiam R$ 200 de auxílio-moradia e, agora, estão pegando esse dinheiro para sobreviver, voltando à ocupação, construindo suas casas", afirma.

Maria Alice também diz que se preocupa com o grande fluxo de pessoas nas ruas do bairro onde mora. Segundo ela, houve um notável aumento no número de pessoas de máscaras nas ruas, mas, ainda assim, o movimento é grande, contrariando a recomendação para ficar em casa.
"Dá medo demais. Fico olhando o comportamento quando vou no mercado, na padaria, e vejo que, para muitos, ainda não caiu a ficha da dimensão de tudo isso. Ninguém está preparado para uma coisa dessas e muitos nem conhecem a história de coisas semelhantes que já aconteceram, mas eu fico impressionada com a ignorância de muitos."
"Geralmente, as pessoas só se tocam quando chega perto. Muita gente zombava da pandemia e só se deu conta quando foi acometido. Na periferia, isso é mais potencializado. É mudança de hábito", completa Maria Alice.

Agente de saúde Rozangela Silva relata angústia de trabalhar e morar na periferia durante a pandemia, clique abaixo para assistir:
'A gente se apega a Deus e às pessoas'

Rozangela Silva, a agente de saúde que criou um grupo com os pacientes, também sente na pele o impacto da pandemia no trabalho e na vida, já que, para ela, os dois estão inevitavelmente entrelaçados (veja vídeo acima).
"Fico muito angustiada por não poder fazer as visitas, porque a gente só vai nas casas que realmente precisam. Somos a ponte entre o médico e o paciente, mas, agora, estamos privadas de fazer isso."
A ideia de criar um grupo para ajudar as pessoas a terem atendimento na pandemia veio de um trabalho que ela já fazia antes de sequer ouvir falar de isolamento social. Com as cobranças dos moradores, também é uma forma de esclarecer a todos, de uma só vez, a situação da estrutura de saúde.
Rozangela Silva (no centro) é agente de saúde há quase 20 anos — Foto: Acervo pessoal
Rozangela Silva (no centro) é agente de saúde há quase 20 anos — Foto: Acervo pessoal
"Eu já tinha o número de muitos, porque são pessoas que precisam mais, que passam mal com frequência, e que temos que monitorar. Sem poder vê-los pessoalmente, pensei em criar um canal em que eu pudesse tirar as dúvidas de todos, da melhor forma possível. Quando precisa, também entro em contato com o médico, ele me passa alguma orientação, etc", diz.

Ainda segundo Rozangela, o peso de estar no enfrentamento à pandemia é bastante angustiante.
"Quando passa o dia e chego em casa, depois de me higienizar, quando me sento, a mente fica tão cansada, sem poder raciocinar. Tem momentos que eu choro. Quando vejo alguma colega triste, tento apoiar. O cerco está se fechando cada vez mais. A gente se apega a Deus e às pessoas. Àquelas que a gente ainda pode ter contato."
'O idoso da favela é deixado de lado'

A medida adotada pela prefeitura de Recife para vacinar idosos contra gripe e influenza no esquema de "drive-thru" não é acessível para a população da periferia, segundo Edivania. Implantada em locais como o Parque da Macaxeira, na Zona Norte, e o Shopping RioMar, na Zona Sul, os pacientes atendidos sequer precisavam sair do carro para receber a imunização.

Entretanto, segundo Edivania, nos postos de vacinação de Nova Descoberta, por exemplo, as doses ficaram cada vez mais escassas — além da falta de substituição das profissionais afastadas.

"Em um dia, no estádio do Náutico [nos Aflitos], a prefeitura vacinou 2 mil pessoas. No meu postinho, os idosos tinham que chegar às 5h, porque não chegava vacina. Quando chegava, era entre 20 e 50 doses. A classe média foi favorecida e a favela foi deixada de lado, porque qual idoso de Nova Descoberta vai ter carro para ir até os pontos com 'drive-thru'? Isso porque nem tínhamos técnica para aplicar. Quando tivemos, foi essa guerra. Tivemos que priorizar os acamados, os mais vulneráveis", afirma.

Por meio de nota, a Secretaria de Saúde do Recife disse que o técnico de enfermagem que atuava na Unidade de Saúde da Família Vila Boa Vista "entrou de licença médica e, na próxima semana, outro profissional chegará para substitui-lo".

Em relação a quantidade de doses enviadas para as unidades de saúde, a secretaria disse que faz a distribuição de acordo com a quantidade recebida do Ministério da Saúde e, neste ano, "o governo federal não enviou todas as doses necessárias para as duas primeiras fases da campanha de uma vez. O envio foi feito aos poucos, o que fez a vacinação ser interrompida algumas vezes".

Sobre o esquema "drive-thru", a prefeitura disse que "era apenas uma das opções de imunização oferecidas pela Prefeitura para evitar aglomeração", que o Programa de Imunização também vacinou as pessoas com mais de 60 anos "nas cerca de 150 unidades de saúde com sala de vacinação" e que foram montados esquemas do mesmo tipo "em diversos pontos da cidade, inclusive dois deles na Zona Norte: no Parque da Macaxeira e na Avenida Beberibe, no Arruda".

Por fim, a prefeitura disse que vacinou cerca de 320 mil pessoas contra gripe em 2020, tendo concluído a vacinação de mais de 215 mil idosos (118% da população idosa estimada pelo Ministério da Saúde, ultrapassando a meta de 90%) e mais de 68 mil profissionais de saúde (108% do total, também superando a meta de 90%), além de outras 35 mil pessoas do grupo prioritário da segunda fase.

Nova Descoberta

Localizado em uma região de morros e encostas, Nova Descoberta tem um dos maiores índices de exclusão social do Recife. Entre os problemas enfrentados pelos moradores está a frequente tensão por causa de deslizamentos de barreiras, comuns aos períodos chuvosos na capital.

População: 34.212 pessoas.

Localização: Na Zona Norte do Recife, em uma área de morros

Origem: A ocupação começou no início do século XX, com a saída dos mocambos, habitações precárias, localizadas na região central da cidade . Houve, assim, uma explosão demográfica do bairro, além do surgimento de fábricas têxtil no entorno do bairro, fazendo com que pessoas vindas do interior do estado migrassem para Nova Descoberta.
Dicas de prevenção contra o coronavírus  — Foto: Arte/G1
Dicas de prevenção contra o coronavírus — Foto: Arte/G1

Fonte: G1

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